Eutanásia
Tinha 19 anos quando me pediram ajuda, pela primeira vez, para morrer.
Era aluna do 2º ano de enfermagem e encontrava-me a estagiar num serviço de cirurgia no Instituto Português de Oncologia do Porto.
Em quinze dias de convivência diária (cerca de 8 horas por dia) assisti ao declínio do estado de saúde daquela mulher e fiquei a conhecê-la bem. Naquela altura e como era aluna, supostamente teria só dois doentes atribuídos, mas como aquela requeria muita atenção, era o que se chamava "uma doente pesada" não pelo peso dela mas sim pelos cuidados que inspirava pois estava totalmente dependente de terceiros, fiquei dispensada do segundo. Desta forma além de ser a sua (quase) enfermeira privativa, virei a sua dama de companhia. O que para ela era uma alegria já que, por ser de mais de 100 Kms do hospital, só tinha visitas aos fins de semana.
Olhando para trás, penso que a minha orientadora de estágio organizou assim as coisas para que aquela doente estivesse menos sozinha na reta final da sua vida. Estava há meses a aguardar vaga num serviço de cuidados paliativos. Estava à espera de morrer. Não há outra forma de o dizer, estava a mais de 100 Kms da sua família à espera da morte, que tardava. Ela e a vaga de cuidados continuados. Por isso, continuava internada num serviço de cirurgia (no qual é suposto só estarem pacientes operados ou para operar)... Continuava presa a um corpo que não lhe servia mais, num serviço onde a azáfama de enviar e receber doentes do bloco não se compadecia com as suas "dores".
As nossas manhãs passavam-se entre os cuidados de higiene e conforto no leito que representavam horas de tortura entre as mobilizações e os pensos às extensas úlceras de pressão (são feridas características a quem está acamado há muito tempo) que teimavam em não cicatrizar apesar de todas as alterações de decúbitos (posição na qual o doente permanece deitado na cama) e de todos os produtos que se lá colocavam, a leitura de revistas como a "Maria" ou a "TV Guia" e aquilo que ela mais gostava: contar histórias da sua vida, como se estivesse que a passar o testemunho. Eu gostava muito de a ouvir mas ao mesmo tempo tinha muita pena... Pena por ela, mas sobretudo pela sua família que eu calculava não fazer grande ideia do mulherão que tinham como mulher, mãe e avó.
"Sabe Sra Enfermeira, trabalhava de dia no campo e à noite na máquina de costura para poupar todos os cêntimos e poder mandar o meu filho para a faculdade. E mandei! Ah se mandei! Agora é um advogado importante lá na terra. Toda a gente mo gaba!!"
"Mas em tantos anos de sacrifício nunca rompi nada. E agora que estou aqui de papo pró ar, a ter a vida que achava que queria - não fazer nenhum e ter alguém que me lesse as revistas - tenho tudo em ferida. Agora que podia ter sossego, custa-me a respirar. Ah e as dores, as dores de cada vez que me mexem. Essas são o pior. Não há nada que me tire estas dores? Tantos frascos que prái trás e nenhum é capaz de me tirar as dores?"
Tinha apenas 19 anos de imaturidade e inexperiência quer profissional e sobretudo pessoal. Fiquei sem pinga de sangue, sem chão... "Descolhoada" como se diz na minha terra, quando numa manhã particularmente difícil pelo agravamento do estado geral me atira a medo, colocando a sua mão sobre a minha: "Por favor, não aguento mais! Ajude-me a encontrar a paz, ajude-me a morrer! Não diga nada ao meu filho e aos meus netos pois não fazem ideia do que vai aqui no meu coração, mas pelo amor de Deus, não me deixe mais nesta agonia e ajude-me!". Chorava baixinho, através da máscara de oxigénio, de dor e de sofrimento mas completamente lúcida. Eu não consegui articular palavra, apenas fui capaz de lhe afagar o cabelo que já não lavávamos há três dias pois não conseguia tolerar mais manipulações do que aquelas que eram necessárias para os pensos... Nesse dia chorei muito, por ela e por todos os outros que como ela, tinham uma mente lúcida preso num corpo que não lhes respondia mais. Por todos que estão presos num presente obscuro e doloroso, sem qualquer esperança de melhorrar, sem poderem partilhar com os entes queridos oq ue lhes vai na alma para não os magoar ainda mais nem conseguirem por-lhe um fim ou encontrarem a paz que merecem.
Nunca contei o sucedido a ninguém mas solicitei à equipa médica que reavaliasse a analgesia pois a dor estava descontrolada. Já nem sequer conseguíamos lavar-lhe o cabelo ou elevar-lhe a cabeceira da cama sem que gritasse de dor., gastando as pouca forças que ainda tinha. No dia seguinte tinha prescrição para preparar uma perfusão continua de morfina (qualquer profissional de saúde compreenderá o que significa quando se toma esta medida de controlo da dor), pude lavar-lhe o cabelo e ler mais umas fofoquices da "Maria" enquanto ia dormitando porque finalmente as dores tinham cedido à morfina, à bendita da morfina! Antes do fim de cada turno, ia sempre despedir-me e perguntar se precisava de mais alguma coisa. Normalmente respondia, "até amanhã, se Deus quiser". Naquele dia, agarrou-me na mão e agradeceu-me por aturar "as tontices de uma velha. Obrigada pela pachorra e por tudo, filha!". Ela sabia e eu no meu âmago também que se tratava de uma despedida mas não choramos. Não, só nos despedimos pois ambas compreendíamos que era melhor assim, ela sem dores e em paz!
No dia seguinte verifiquei com alívio que tinha dois doentes "novos" atribuídos, duas novas vidas que lutavam contra o malvado do Cancro, mas na fase ativa da batalha e não quando se "a toalha cai ao chão". Fiquei a saber que tinha partido poucas horas depois do nosso último encontro, em paz e sem dor, dormindo à boleia do opióide. Nunca irei esquecer aquela mulher, aquela mãe e avó que no momento de maior fragilidade humana não se esqueceu de pedir para os seus entes mais queridos fossem poupados dos pormenores sórdidos da sua dor. Não deixou de os colocar em primeiro plano mas pediu ajuda para morrer por não conseguir aguentar mais aquela espera por um fim com dignidade.
O ser humano não está preparado para encarar a morte de frente, é quase como um tabu anti-natura por isso não é simples aceitar que alguém queira morrer. Não é fácil aceitar que baixem os braços e deixem de lutar pela vida, não só por eles próprios como por quem os rodeia. Mas só quem ainda não viu um corpo coberto de escaras putrefactas, tubos por tudo que é orifício, natural e não natural, pode compreender que respirar nem sempre é sinónimo de viver. Abrir os olhos, reconhecer quem os rodeia ser capaz de falar não significam viver condignamente. Se houver lucidez e consciência, o Homem deve poder decidir deixar aquele corpo que não vive, sobrevive. Deve lhe ser dado o direito de decidir que chegou a altura de abandonar o invólucro que não responde mais às exigências da vida.
Na semana em que este assunto estará na ordem do dia, deixo-vos aqui esta reflexão. Temo que quase todos os profissionais de saúde, das diferentes áreas, tenham histórias semelhantes a esta para contar (que grande parte do meu percurdo trabalhei em bloco operatório, tenho umas quantas). Temo ainda mais que muitos de vós tenham exemplos desta angústia no circulo de familiares e amigos mais próximos.
Na vida, como na morte, nem tudo é preto ou branco. Há também o cinzento a ter em consideração. Por tudo isso anseio que a morte medicamente assistida passe a ser permitida em Portugal. País pequeno e de brandos costumes mas sempre pioneiro nos momentos da verdade. Oxalá este seja só mais um exemplo desta nossa grandeza que nos distingue do resto do mundo.