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As birras da mãe

Venturas e desventuras de uma tripeira que rumou a sul. As histórias da filha, da mulher e da mãe.

Biscuit

obrigada biscuit.jpg

 

Tenho a mania que sou casca grossa, que não me deixo afectar facilmente, que a minha carapaça me protege sempre e que não deixa que a tristeza se entranhe e se propague.Tenho puta da mania de racionalizar tudo para que seja simples retirar sempre um lado positivo de cada tombo, de cada bate-cu que a vida tanto gosta de me proporcionar e que isso me vai deixando imune ao desgosto.

O dia de hoje foi terrível, muito mais difícil do que alguma vez poderia supor mãe e, como sempre, quando tenho um dia assim é para ti que escrevo.

Lembro-me perfeitamente da tua reacção quando abriste a porta de casa para me deixares entrar com a mala das férias e um cachorrinho que tinha um pouco menos de um palmo te passou por debaixo das pernas. Tínhamos acabado de perder o cão que cresceu comigo e eu achei que seria boa ideia "substituí-lo" para que não te sentisses tão só - já te bastava teres "perdido" a tua filha para um trabalho a 300 kms de distância, não precisavas de ficar sem cãopanhia. 

"Eu não quero mais cão nenhum...", "sofre-se muito quando eles morrem", "depois é a prisão de ter de passear, dar de comer, não poder ausentar-me..." Disseste de tudo um pouco e deixaste bem claro que o cachorrinho que tinha comprado a uns criadores lá para os lados da Estefânia (ainda hoje estou para perceber como foi que sem GPS ou google maps - na altura ainda não havia dessas modernices - fui lá dar direitinha sem conhecer nada do centro de Lisboa) não era bem vindo. Sim mãe, comprei o cão. Pronto já confessei. Saiu-me um grande peso de cima! Eu sei que te disse que me tinha sido oferecido por uma senhora da clínica que estava aflita para despachar os cachorrinhos, ouviu dizer que o nosso tinha morrido e que me pressionou para to trazer, mas a verdade é que o comprei... Desculpa ter-te mentido mas se tivesse dito a verdade o meu plano nunca teria funcionado... Espero que me perdoes.

A ideia era levar o cão durante as minhas duas semanas de férias e esperar que vocês se entendessem durante o tempo que eu estaria fora. Caso isso não acontecesse estava bem tramada, o que ia fazer com um cachorro de 2 meses e a trabalhar 16 horas por dia? Mas isso não ia acontecer, porque se tu me conhecias bem, eu não te ficava nada atrás e por isso a psicologia invertida entrou em acção: "pois eu também disse à senhora que tu não ias querer", "vou já ligar-lhe a dizer que o vou devolver mas agora só no fim das férias e tens de me fazer o favor de ficar com ele enquanto for para Palma, pode ser?".

A coisa ficou assim acordada e sempre que te ligava para contar da viagem ouvia "o cão é muito esperto, anda sempre atrás de mim, devias ver é tão fofo" e eu mantinha o plano traçado à risca "não te afeiçoes muito ao cão, depois ficas triste quando o levar de volta"... Correu de feição e quando cheguei o Biscuit já tinha nome e um lar. Fomos ao veterinário tratar das vacinas, do chip e tive que disfarçar muito bem para que não desconfiasses de nada porque fiquei roxa quando disseram que não era puro... Mas tu ripostaste logo: "além disso não ser o importante, a cavalo dado não se olha ao dente"!  Ah se tu sonhasses...

Estavam os dados lançados para uma história brutal de amizade e lealdade que durou até ao último dos teus dias. Claro que na altura estávamos muito longe de imaginar que 5 anos volvidos te perdêssemos sem aviso, assim sem dó nem piedade. Ainda o deixei ao cuidado de uma das tuas vizinhas enquanto eu resolvia todas as questões burocráticas de quem assim do pé para a mão perde o chão e fica com uma casa para cuidar a 300 Kms de distância, que se prontificou logo para o acolher mas quando lhe fui agradecer e o vi debaixo de uma cadeira, infelicíssimo, de onde saltou a correr assim que ouviu a minha voz, não fui capaz de "abandonar" aquele que tão prontamente cumpriu a missãoque lhe encomendei de te fazer a companhia que eu não podia. Não, aquele que tantas alegrias te deu tinha de vir comigo, porque de uma maneira talvez um pouco retorcida trazia com ele um pouco de ti. Não dizem que os cães são os espelhos dos donos? O Biscuit sempre me fez lembrar-te muito não apenas por ter sido o teu cão mas porque tinha o teu enorme coração e a tua resiliência.

A adaptação à nossa realidade não foi nada fácil: estava habituado a ter-te sempre por perto e nós nunca estávamos em casa, estava habituado a ser o rei do pedaço e teve de aturar um cachorro endiabrado com 6 meses que tinha a mania que era o dominante e o pior: sentia muito a tua falta... Não comia nada, só fazia asneiras, vê lá tu que chegou a subir para cima da mesa da sala e mijar bem no centro! Um mimo! Estava revoltado com a vida e eu confesso que até foi uma boa terapia para mim - quanto mais ele se rebelava, mais eu "me via ao espelho" e tentava acalmar os ânimos para ver se ninguém me atirava ao rio, que a dada altura era o que me apetecia fazer-lhe...

Esforçámos-nos muito para compensar a tua ausência e com o passar dos tempos e o lamber das feridas, conseguimos contrariar a tristeza. Quero muito acreditar que viveu feliz connosco, porque nós sem dúvida que ficamos mais ricos por o ter tido ao nosso lado!

Mas o caralho dos anos foram fazendo os seus estragos: primeiro veio a cegueira (já há muito que estava mais pitosga que o Mr. Magoo, de tal forma que já não podíamos mudar um móvel do sítio que era vê-lo às turras valentes e a tombar! Com crianças em casa nem sempre é possível controlar possíveis obstáculos ao cegueta), depois a dificuldade em subir para cima de alguma coisa (ultimamente até o degrau para entrar em casa lhe é difícil transpor e tu sabes como ele gostava de ir para o sofá), a incontinência agora já total (valha-nos o terraço) e ainda um processo qualquer oncológico que o tem feito emagrecer estupidamente de tal forma que quando lhe dei banho na semana passada me fartei de chorar de tão magro que estava apesar de continuar a comer lindamente... Tem sido internado várias vezes nos últimos dois anos por pancreatites agudas que lhe causa uma disenteria tal que ao fim de poucos minutos já é só sangue, mas o cabrão recupera sempre! Vou sempre a voar com ele para o veterinário, entra quase morto, dão-me sempre muito pouca esperança de sobrevivência porque um cão daquele tamanho não pode sobreviver àquele quadro... Começam a dar-lhe  antibióticos, protectores gástricos e soro e puf, finta a morte outra vez. A veterinária nem queria acreditar da última vez que recorremos ao internamento, porque da vez anterior (cerca de 6 meses antes) tinha-me informado que havia algum cancro que lhe estava a sugar a comida que ingeria (uma vez que nunca perdeu o apetite) mas que não valeria a pena investigar porque dada a idade do cão e o estado geral ele não iria aguentar o tratamento, portanto que me preparasse que faltaria muito pouco para o perder... Tá beeeeeeem... É tão teimoso como tu que se recusa a entregar os pontos e a mim tinha-me sido muuuuuito mais fácil que ele cedesse, PORRA!

Calma mãe que aparentemente ele não estava a sofrer (caso estivesse, tanto eu como ela teríamos abordado logo o tema), continuava a andar, a comer como se não houvesse amanhã e não chorava por isso acordamos que ainda não tinha chegado o momento. Mas o caso mudou de figura esta semana e eu finalmente arranjei forças para lhe dar um último banho, ao qual já pouco ou nada reagiu (e tu sabes como ele odiava a água e o secador), embrulhá-lo na toalha e levá-lo comigo para que encontrasse a paz que eu sabia que já não tinha aqui.

Armei-me em tesa e fiz tudo sozinha sem nunca pensar que me fosse custar tanto. Vá lá que, à última da hora, tive a feliz ideia de pedir aos meus sogros que ficassem com o Mateus caso contrário não sei como teria sido.

Ficou no meu colo o tempo todo, a lamber-me as mãos como se percebesse o que iria acontecer, na altura H ainda hesitei mas depois pensei que te iria encontrar e a dúvida desapareceu imediatamente. Deram-lhe um sedativo para que não sentisse nada e depressa a sua respiração passou a ser mais espaçada e profunda. A veterinária sugeriu que saísse mas não fui capaz de o deixar sozinho. Segurei-o até ele se deixar ir calmamente e um pouco mais que isso até. No fundo sabia que o que estava a fazer era devolver-lhe a dignidade que há algum tempo lhe fugia, mas CARAMBA foi muito duro despedir-me dele e do poucoxinho que ainda me restava de ti... Parece parvo, mas para mim ainda existias nele e agora já nem isso me resta! Sei que cuidarás bem dele e ele bem de ti. E, hoje, só isso me consola: do meu colo para o teu. Aquele colinho que só tu sabes dar.

 P.S.- Desculpa-me não ter fotos vossas, mas acredites ou não, ainda me falta coragem para abrir o caixote das fotografias. Esse e todos os outros que continuam selados na garagem da tia desde que partiste...

 

 

 

 

 

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